História e Literatura: parte 1 - Ensaios de Delírio

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História e Literatura, o que elas têm em comum e de diferente? Essa série de ensaios que relacionam esses dois campos de escrita tem o intuito de apresentar e introduzir-los a um assunto importantíssimo, apesar de parecer não ser. Serão textos simples, diretos, e espero que consigam pegar o fio da meada. Deixarei todo o academicismo de lado para apenas apresentar o tema a vocês. Uma ou outra vez vocês verão eu falando de alguns historiadores, críticos literários e romancistas;  mas será apenas isso. Quero é clarear o assunto para vocês, não confundi-los mais. Por último, esses ensaios não seguiram uma estrutura certinha com apresentações, introduções e etc. Será apenas uma conversa e quero que desfrutem o máximo dela.
           
            Talvez a coisa mais óbvia a se dizer é que um romance conta uma história, há personagens, uma trama, enredo, algumas lições a apreender, conhecimento envolvido, aventura, mistério, narradores incríveis, uma prosa suave e gostosa. Até aí tudo bem, mas o que difere o “contar uma história” da própria História (letra maiúscula por ser a matéria) propriamente dita? Na Academia não falamos “contar uma história” usamos basicamente o termo historiografia, que nada mais é que a escrita da história.

Normalmente temos a literatura como ficção e a história como verdade; a literatura narra aquilo que poderia ser, poderia ter sido, narra sonhos, desejos e anseios; narra aquilo que o escritor quer contar, seus sentimentos, suas emoções, seus pensamentos. Naturalmente: narra aquilo que ele vê no mundo ou quer dele – às vezes isto fica muito claro, outras vezes não.

"Escrever romances é um ato de rebelião contra a realidade, contra Deus, contra a criação de Deus que é a realidade. É uma tentativa de correção, mudança ou abolição da realidade real, substituindo pela realidade ficcional que o romancista cria. Este é um dissidente: cria vida ilusória, cria mundos verbais porque não aceita a vida e o mundo como são (ou como creem que são). A raiz de sua vocação é um sentimento de insatisfação contra a vida; cada romance é um deicídio secreto, um assassinato simbólico da realidade." - Mario Vargas Llosa, 1971. 

Por outro lado, temos a história carregando o imaginário fardo da verdade. Ela narra os fatos, os acontecimentos, os personagens históricos; suas relações entre eles e etc. Basicamente, o senso comum vê isto marcado como livro de história, com o compromisso da veracidade do passado. Aquela guerra aconteceu assim, enquanto Harry Potter não existe de verdade. E isto que costumamos escutar, e então alguns defendem: “Harry Potter existe nos nossos corações”. É isso que normalmente encaixamos no selo de História e Literatura. Entretanto, as coisas não são bem assim.

Apesar de acharmos muitas vezes que a história tem o fardo da verdade, jamais chegaremos a alcançá-la. Aqui escutamos a típica frase de que há inúmeras verdades; ou até, nada é verdade (já jogaram Assassin’s Creed?). Escutamos até falar que tudo é relativo, que depende do ponto de vista... Toda escrita da história, a historiografia – ou mais claramente aquele livro de história que você encontra na livraria –, nada mais é que uma versão de um acontecimento passado, uma perspectiva, um ponto de vista; uma história narrada a partir de um posto de observação construído num período próprio. Para deixar mais claro, Carlo Ginzburg, historiador italiano, escreveu em 1966 um livro sobre bruxas e feiticeiras nos processos de inquisição durante o século XVI e XVII; além de viver o começo da guerra fria, sentir os traumas que o fascismo deixou em seu país, seguir uma corrente ideológica, política e militante, podemos dizer que ele olhou para o passado com seus olhos do presente influenciados por tudo que tinha vivido até o momento – assim, ele acabou por escrever apenas uma versão daqueles processos da Inquisição. A fonte histórica apenas nos permite entrar em contato com o passado. Exemplo: a carta-testamento de Vargas, a do seu suicídio, sempre será a cara-testamento de Vargas escrito em 1954, resta o historiador interpretá-la da sua forma.

Cai por terra então a história como baluarte da verdade.
E a literatura, é tudo falso, mera ficção e fantasia, coisa que nunca existiu? Sim e não. Os personagens de fato podem ser inventados, mesmo tendo como referencial pessoas que existiram; mas, nem por isso ele é falso, mentiroso, que fala de coisas que nunca existiram. Não será, também, na literatura que buscaremos os fatos e acontecimentos do passado: em vez disso, encontraremos nela nada mais que as visões de mundo do escritor; como já disse anteriormente, seus desejos, anseios, sentimentos, pensamentos, ideias, perspectivas – e isso é real. O romancista inscreve na sua literatura aquilo que ele queria que o mundo fosse, aquilo que o mundo é para ele, o mundo que ele quer mostrar para os outros: as injustiças, as alegrias, as melancolias, os sorrisos, os personagens se dando bem, se dando mal, as adversidades da vida como a pobreza, a idiotice, o amor, a falta de amor; basicamente, encontra problemas e ensaia respostas para ele.

Cai por terra a diminuição da literatura como mera ficção e fantasia.
Afinal, não são os desejos e sonhos fantasiosos que impulsionam os homens a viverem?
Tanto a história quanto a literatura “são formas diferentes de dizer o real. Ambas são representações construídas sobre o mundo e que traduzem, ambos, sentidos e significados inscritos no tempo.” (p. 6).[1] O que isso quer dizer? Que tanto história quanto literatura são os pontos de vistas do historiador tanto quanto do escritor. Basicamente tiramos na sua interpretação sobre os acontecimentos do passado, o mundo que o historiador vê com seus olhos; tiramos dos sentimentos e temas dos romancistas a forma que ele enxerga o seu mundo. Tudo isso marcado por uma época, ou seja, o escritor publicou o livro na segunda metade do século XIX, no começo do XX; o historiador escreveu sobre isso ou aquilo no final do século XX, durante a Segunda Guerra Mundial.

Podemos dizer que diante destas coisas ditas, não sabemos mais nada; distinguir o que é falso ou verdadeiro, o que importa e não importa; o que tem maior peso? Buscamos apenas relativizar as coisas sem sairmos em cima do muro? Não escolherei entre um ou outro, sendo ambos interpretações do mundo, direi apenas o que já foi dito. O que vale muito mais no mundo de uma pessoa são suas vontades, seus sentimentos. Essa carga sentimental que aprendemos não apenas a interpretar como a demonstrar é o que dá verdadeiro significado ao mundo. São os sentimentos e os significados que eles dão a palavras como amor, guerra, fantasia, ficção, história, felicidade, que fazem a realidade de uma pessoa ser muito mais forte que o próprio mundo concreto, físico. O historiador sem dúvida traz isso em sua vontade de se aproximar da verdade, em sua militância como desbravador do passado e transmissor de conhecimento; mas ao meu ver, os sentimentos são a terra da literatura e em suas metáforas que transcendem o tempo e os espaço, interpretas de diferentes maneiras ao longo dos séculos e séculos.


           


           




[1] Citação retirada de um artigo da historiadora Sandra Pesavento - História e Literatura, uma velha-nova história.