O Gigante Enterrado, um livro para o nosso tempo

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Eu penso nos tempos de hoje, nesse dia a dia que vivo, aqui em Curitiba com a minha vida corrida de estudante e estagiário. Acho que assim como muitas pessoas, eu paro e penso nos tempos atuais. Eu simplesmente não consigo ter uma boa noção das coisas. Quando começo a esboçar algumas ideias, elas se tornam volúveis nesse ritmo de relativismos, bolhas sociais e intenso tráfego de informações. Acho que isso é um fator de viver a contemporaneidade. Assim como todos que já passaram pela terra, captar de forma ampla e profunda o tempo presente de suas vidas era – e ainda é – algo muito difícil; de se compreender, e ainda mais de narrar.
É aí então que algumas obras surgem para dar algum sentido ao aparente caos. O que eu diria é que O Gigante Enterrado cumpre um pouco esse papel. Entretanto, vou além. Esse romance de fantasia, repleto de cavaleiros, “bárbaros”, seres míticos e sentimentos nas suas formas simples e puras – como o amor e a morte –, é uma obra mais do que necessária nos tempos de hoje. Isso porque ela trabalha com temas tão atuais, tão sensíveis e significativos para o nosso contexto; além de serem questões, se não primordiais, muito velhas à humanidade. Em tempos de impunidade, devemos crer numa paz comandada pelo esquecimento de crimes imperdoáveis?
Como ficaria à Palestina e Israel se seu passado de conflitos e atrocidades fosse esquecido visando a paz? Seria certo optar pelo esquecimento de todos que morreram defendendo suas vidas e seus ideais – e além, daqueles inocentes pegos no meio do fogo cruzado – por uma paz criada a partir de um passado que não existiria mais? É certo esquecer as atrocidades cometidas pelo Estado colombiano ao longo do tempo, assim como todos os sequestros que as Farcs promoviam em busca de financiamento numa luta armada contra a violência estatal? Onde estaria o espaço das vítimas de ambos os lados diante de um esquecimento e da paz forjada no papel? Diante da intensa luta em volta dos arquivos da ditadura militar brasileira, o que falaríamos se optassem pela queima dos documentos visando não abrir antigas feridas e não reaver velhas cicatrizes? Chagas estas que muito dói ainda na pele e nos corações daqueles que a viveram.

Queimando o passado

Dentro do mar de memórias traumáticas e violentas, do esquecimento corriqueiro e imposto, das feridas abertas e incuráveis, haveria espaço para paz e o perdão?

O tom é este, a premissa é essa:

Num tempo em que mito e história são das faces da mesma moeda, a Grã-Bretanha está em ruínas, marcada pelas recentes guerras entre bretões e saxões e pela queda do rei Arthur. A população, órfã e desnorteada, vê-se exposta às mais diversas ameaças, de invasões de ogros a uma misteriosa névoa que afunda o passado no esquecimento.
Quando Axl e Beatrice decidem partir em busca do filho, não se lembram de suas feições, da última vez em que o viram, e nem mesmo sabem ao certo seu paradeiro. Durante o percurso, o casal de idosos encontrará sir Gawain e outros cavaleiros remanescentes da era arturiana, se engajará na busca de uma dragoa que parece estar ligado à névoa e terá seu amor posto à prova, afinal, será que o afeto continua forte o bastante quando já não se podem rememorar as alegrias e agruras que compartilhamos ao longo dos anos?
 

Para se falar de questões primordiais e sensíveis, Kashuo Ishiguro escolheu algumas ferramentas interessantes: dentre elas, a fantasia. Acredito, eu, não haver escolha mais certa. Ao se trabalhar com elementos de fábulas, damos liberdade para pensar o impensável, ir além num mar de metáforas e dilemas, onde os pensamentos e as ideias do romancista podem correr soltas no meio de alegorias entre cavaleiros do passado e presente, num casal de velhinhos que se amam e num jovem que carrega um futuro incerto, em que vingança e perdão se confundem no horizonte. Além disso, nossas reflexões ganham o incrível poder de fazer parte da fábula, poder também correr solto e fazer parte daquele mundo, assim como das ideias do escritor. Como acontecem com as fabulas, elas devem ser contadas, interpretadas, reinterpretadas, compreendidas em diferentes parâmetros, para sem dúvida tirar alguma coisa dali. A literatura funciona muito bem assim. E Kashuo Ishiguro sabe muito bem fazer literatura.
Não quero que vejam essa análise como uma promoção ao romancista. Mas isso é um fato, ele escreve muito bem. Algumas ressalvas sobre esta obra sem dúvida eu tenho. Apenas com sua leitura, é de se contestar o seu Prêmio Nobel; afinal, o prêmio é dado ao conjunto de seu trabalho literário e em sua influência no mundo. Sua obra não é tão empolgante como tantas outras que tem o selo do Nobel na capa. Sua obra é demasiada simples, direta, pontual. Para uma obra que carrega elementos de fábula e fantasia, não encontramos tempo nem espaço para se pensar nesse mundo mítico criado por ele, nesse passado de uma Inglaterra pós-Arthur, confusa e perdida, em que só entramos em contato pelas mãos de Ishiguro. Pouco são sentidas as angustias e as felicidades elucidadas na obra. Tanto é que o romancista deixa claro, seu livro demanda uma maior sensibilidade, ou até, uma sensibilidade própria. Em alguns momentos ela se torna arrastada. E uma crítica que tem a ver com meu gosto de leitura, a obra é rigorosa em sua estrutura, num sentido de que é pontual e linear quase do começo ao fim, quase numa estrutura tradicional. São poucos os trechos em que Ishiguro permite dar liberdade à narrativa, trazendo monólogos e devaneios dos personagens, montando um quebra cabeça entre o passado e suas lembranças afetadas pelo hálito do esquecimento.
Se me é permitido fazer alguma comparação, muitas coisas que enriquecem, para mim, obras como Cem Anos de Solidão, não são vistas em O Gigante Enterrado.

Mas para isso há uma incrível solução. Entre nessa leitura não querendo crer que ela é uma obra de fantasia ou de realismo fantástico. Decerto que ela bebe de alguma de suas ferramentas, mas são pouquíssimas. Ficamos então com a fábula. Ela não é um gênero em si, mas foi a forma mais próxima que eu encontrei para apresentar o romance a vocês. E apesar de não conter estes aspectos que me dão prazer maior ao ler, O Gigante Enterrado é uma obra poderosa. Isso mostra uma vez mais que linguagem simples não é parâmetro de qualidade narrativa ou de prosa. Ela em si é habitual, pontual e direta. Sua narrativa não tem nada de complexa e multifaceta. A história é despretensiosa, bastante comunicativa, familiar e intima. Se Ishiguro revela que deve-se ter certa sensibilidade para compreender de forma mais profunda sua obra, sua linguagem mostra a facilidade no acesso de sua leitura. Como uma cebola, ele vai nos revelando camadas da grande metáfora que é criada ao longo de toda a história, em que o maior sentido só nos é dada com o desfecho da jornada; que além do mais, deixa pequenas, mas cruciais, questões abertas. Assuntos que, repito, são de importância ao nosso contexto atual.


As falas e os diálogos são diretos e sem rodeios. Mas carregam um lirismo poderoso, assim como os monólogos dos personagens. A trama se constrói em torno de algumas imagens, alegorias, que estão muito bem clareadas para o leitor. Temos o cavaleiro do passado, que serviu na guarda pessoal do Rei Arthur, Sir Gawain. Ali estamos lidando com o passado em si, um passado cruel e sem paz, que sem dúvida delineou o presente da história, da Inglaterra. Temos então o guerreiro saxão que fora treinado pelos bretões, Sr. Wiston, que coloca sobre sua tutela o jovem Edwin, uma criança saxã e de criação saxã. Os dois sem dúvida fazem parte do presente, e estão com a mão do futuro. Temos por último a imagem do belo casal de velhinhos, Axl e Beatrice, que juntos representam aquele amor que a tudo supera, personagens estes que também fazem parte do passado, que muito já viveram e muitas histórias têm para contar. Eles não serão meros espectadores que assistem o combate entre a memória e o esquecimento, mas se revelam como pessoas comuns que não apenas sentem essa briga entre dois gigantes, como também buscam sim alterar as coisas. Se suas ações não tem tanto peso nas decisões tomadas na jornada, sem dúvida as suas vontades são muito mais poderosas. Aqui é na camada do sentimentalismo, entre amor e morte, que estaremos sentido nós, os leitores, o agravamento da lembrança que falta aos dois, em suas promessas de se amarem, apesar de não lembrarem quem são, pois os dois sentem no fundo o que cada um tem pelo outro. É nessa promessa, cujo esquecimento jamais deixa de assombrá-los, que buscam acabar com aquele regime de paz forjada na mentira e na magia.


A região é alastrada por algo ainda pior que guerras, pela fome ou as pestes, pior até que os ogros que ali ainda habitavam antes de sumirem com o tempo. É com um toque, sem dúvida, de O Senhor dos Anéis, com uma prosa gostosa de se ler, que vamos sendo apresentados à angustia da confusão de viver sobre a sombra do esquecimento. Uma névoa parece impedir as pessoas de acessarem suas lembranças. Se com muito esforço elas tentam, apenas filamentos da memória vêm, uma mais confusa que a outra. Diante disso, poucos na verdade sentem o esquecimento, poucos se afligem com aquilo tudo. É algo já dado como costumeiro, tão trivial que eles nem percebem.

“Você pode estar se perguntando por que Axl não pedia aos aldeões que o ajudassem a recordar o passado, mas isso não era tão fácil quanto se poderiam supor, pois naquela comunidade o passado raramente era discutido. Não que fosse um tabu, mas ele havia de algum modo sumido em meio a uma névoa tão densa quanto a que cobria os pântanos. Simplesmente não ocorria àqueles aldeões pensar sobre o passado – nem mesmo o recente.” (p. 14).

Questão assustadora, não? Assustador por um fator crucial, Ishiguro está falando de nós mesmos. Podemos muito bem encontrar velhas falácias de que o passado já passou, não voltará mais; está por fim, no passado. Talvez com a leitura desse livro você perceba que optar pela cicatriz em vez do conhecimento do passado, seja uma maneira muito fácil de cairmos na ignorância, aceitar uma vez mais esse presente que para muitos sem dúvida não agrada, como também trucida, mata, assassina. E no final das contas, é igualmente assustador porque a culpa recai em nós, pois do costume de sermos ignorantes ao nosso passado, já não ocorre a nós, aldeões dessas terras cheias de sangue, pensar sobre a cor vermelha dela.

“Será que é a vergonha que deixa a memória deles tão fraca ou é só o medo mesmo?” (p. 74).

Num começo, será a vergonha do nosso passado danoso, ou o medo de descobrir novamente os tantos machucados que cometemos aos outros, que faz nossa memória oscilar ao esquecimento? É difícil ao europeu pensar nos tantos genocídios que causaram aos latino-americanos e africanos – assim como ao deles próprios, pois os campos de concentração e tantos outros povos trucidados mandam um memorando –  e cabe a nós, latino-americanos, esquecer desse passado traumático e vergonhoso, em que não parece haver oportunidade de aboli-lo em sua raiz?
Estas questões, dentre tantas outras coisas, uma mais sensível e séria que a outra, são colocadas a nós leitores. Tudo isso numa narrativa que pode muito bem se confundir com infantil – pela sua simplicidade. Acontece que, se não nos atentarmos um pouco, essa escrita remonta também a essa peste do esquecimento, em que palavras são facilmente esquecidas, e deve-se dizer da forma mais claro, completa e direta. Caso contrário, pode-se esquecer o sentido.


Sentimos também certa raiva com os personagens que se confundem uns nos outros, em dizeres e deveres. Sentimos também a passividade que está presente em quase toda a obra, na tranquilidade, quase como se realmente ao combater o esquecimento, a derrota não fosse mudar muita coisa do presente. Há claro, sim, as vontades implacáveis dos personagens em mudar a situação, mas elas estão numa camada mais profunda, soterradas, sem dúvida querendo sair, pois afinal, elas também são mostradas em suas atitudes frias.
Axl e Beatrice, instigadas por reencontrar o filho do qual pouco lembram, aceitam o desafio, aceitam ter as lembranças de volta. Aceitar não, mas buscá-las, mesmo que lembrar seja doloroso.

“– Axl e eu queremos recuperar os momentos felizes que passamos juntos. Não lembrar deles é como se fossemos roubados, é como se um ladrão tivesse entrado no nosso quarto à noite e levado o que nos é mais precioso.
 – No entanto, a névoa encobre todas as lembranças: tanto as boas, quanto as más. Não é verdade senhora?’
 – Nós aceitaremos as más lembranças de volta também, mesmo que elas nos façam chorar ou tremer de raiva. Afinal, elas não são a vida que compartilhamos?” (p. 196).

É assim, numa versatilidade entre a importância das lembranças íntimas até os esboços de uma memória coletiva, que Ishiguro nos apresentando um tema tão sensível. É um livro sem dúvida que requer releituras, novas análises, interpretações de outras perspectivas, pois, apesar de estar confabulando uma Inglaterra pós-Arthur, com cavaleiros, ogros e dragões, sem dúvida ele também está falando de nós, em todas as coisas que colocamos nas nossas costas, nos perigos e na leveza de esquecer, no peso e na vivencia de lembrar.

            Kazuo Ishiguro escreve não apenas uma bela história, como uma obra que cria ordem em meio ao caos, ou ao menos tenta, pois as questões e debates trazidas são de grande importância hoje em dia, em que o campo das ciências humanas não cansa de refletir sobre. Por isso mesmo que essa linda fábula de morte, amor e memória, é extremamente necessária. Suas reflexões ajudam a entender os impasses e as encruzilhadas do nosso tempo, assim como os nossos próprios dilemas e deveres no mundo contemporâneo. Ele não dá respostas, mas cria perguntas, perguntas profundas que tocam até o mais profundo de nossas almas.