O Grande Massacre de Gatos - Os Bardos
AVISO:
as linhas seguintes conterão histórias bizarras e que podem abalar o seu
psicológico. Caso sinta náuseas, empolgação ou uma crescente curiosidade
afaste-se o mais rápido possível, pois a História é viciante e pode fazer mal
ao seu círculo de amizade.
Provavelmente serei um louco ao
iniciar essa coluna. Os Bardos será um punhado de textos que
apresentaram livros que contam histórias. Para melhor entendimento: Histórias
mesmo, essas conhecidas no senso comum com "H" maiúsculo, que é costume falar que
são “reais” e que aconteceram. Entretanto não são histórias contadas em livros
de história dos colégios e escolas. Não, aqui serão livros conhecidas em grande
parte apenas pelo círculo acadêmico, mas que vocês logo perceberão que deveriam
chegar às pessoas que não tomam história como seu ofício.
Mas por quê? Robert Darnton,
o historiador desse primeiro texto, tem uma ideia simples, mas sincera e
verdadeira, sobre contar histórias. Ela não deve apenas ser escrita de
historiador para historiador, de acadêmico para acadêmico. A história está aqui
para nos trazer conhecimento, e negar ela para outros que não querem ser
historiadores é quase uma blasfêmia. Esse é o motivo dessa coluna, e a cada
livro que eu apresentar à vocês espero que percebam como a história é
interessante, pois se acham que ela é apenas aquelas que estão nas escolas é
ignorar talvez a melhor parte dessa matéria. Não culpo vocês se tem essa noção,
apenas o estado do ensino hoje em dia, que acreditem ou não, é quase o mesmo de
um século atrás. Esse texto também não será como uma resenha ou análise acadêmica,
será para você que apenas quer conhecer um pouco mais de história e buscar
inspiração.
Agora, para começar bem, o livro
escolhido é O Grande Massacre de Gatos, do historiador estadunidense Robert
Darnton. Suas pesquisas se voltam ao século XVIII na
França. Sua obra contém seis ensaios históricos sobre aquele período e trazem
os temas mais diversos, exóticos, peculiares e bizarros. Darnton tem a
ideia de que se você tropeçar por alguma voz (documento) do passado e não
entende-lo, por exemplo uma piada da época, é porque você encontrou um acesso
para entender um pouco como aquelas pessoas pensavam, entendiam e viam seu
mundo. Esse é o objetivo do livro.
Então você se vê frente a uma
narrativa de um massacre de gatos na metade do século XVIII, de artesãos que
esmurravam, cortavam aos meios, batiam com pedaços de ferro, quebravam as
espinhas e enforcavam gatos. Amarravam eles em sacolas e jogavam na fogueira,
botavam fogo nesses animais e saiam atrás numa brincadeira. E o “pior” de tudo
é que eles achavam aquilo engraçado, hilariantes, e jamais esqueceriam o feito como algo marcante.
Agora você pensa – O que essas pessoas tinham na cabeça?
E eu pergunto a vocês – Por que Darnton traz essa
história verídica que nos horroriza tanto? Qual seu objetivo? O que isso
significa?
Eu respondo logo em seguida – Ele quer mostrar a você como
aquelas pessoas do passado, cada um à sua época, não são como nós, não pensam
como a gente, além de verem seu mundo completamente diferente do nosso.
Aquele massacre tem um significado próprio para aqueles
artesãos, que para nós é impossível sentirmos, mas não impossível de termos uma
ideia da graça daquele massacre. Essa resposta eu deixo para vocês descobrirem,
afinal, será bem mais prazeroso com a leitura. Darnton utiliza de uma
vasta pesquisa sobre o período, e a simbologia que animas, principalmente o
gato, denotavam naquela sociedade, o estado que os trabalhadores e artesãos
viviam, assim como seus assistentes e os mestres. O historiador remonta e nos
mostra como era as experiências daquela vida e como aquilo explica o motivo de
massacrarem gatos e rirem com tudo aquilo. Hoje em dia é impensável alguém sair
matando gatos, ou pelo menos a grande maioria das pessoas vão condenar o ato,
mas naquela época? Nem um pouco...
Darnton não para por aí.
Outro capítulo conta a história da vida de um inspetor de policia francês, cujo
seu trabalho é fiscalizar escritores, suas obras e a venda delas. Basicamente
o comércio livresco na Paris do século XVIII. Você descobre que Hémere montou um
quadro com o perfil de grande parte dos escritores da época, desde Rousseau,
Voltaire, até aqueles que nunca conheceremos na vida. Ele pesquisou suas
histórias, suas obras e com tudo pode fiscalizar a produção “intelectual” do período. Montou pirâmides etárias, quadros de profissões e de qual “Estado”
viviam (lembrando daqueles três Estados do Antigo Regime: clero, nobreza, e o
restante). Talvez você se sinta maravilhado apenas por descobrir que isso
realmente existia naquela época, que realmente a literatura e as ideias podiam
ser extremamente perigosas, tanto que o governo francês se preocupava tanto a
ponto de destinar muita verba para perseguições de escritores, inclusive em
outros países. No entanto, Darnton não para por aí, ele nos mostra como
que cada relatório desse inspetor sobre os escritores (cerca de 500),
revela como uma forma de ver o mundo, e principalmente a literatura e os
escritores daquela época. Também conhecemos como Hémere classificava,
esquematizada e organizava a vida social e cultural da sua época.
O historiador, tenta em sua obra,
trazer o máximo de perspectivas daquele período na França; e com os temas mais
extravagantes e distinto. Por exemplo: o que dizer de um leitor de 1750? Para a
História, o trabalho de remontar a experiência de leitura do passado é algo
extremamente difícil. Em relação ao geral, poucas pessoas liam no século XVIII.
Muitos eram analfabetos e não esqueçamos que grande parte da população era
camponesa. Agora, como saber como uma pessoa lia um livro? Como saber como ela
identificava os mistérios e o sentimentalismo do livro? Como saber o que ela
procurava num romance ou ensaio? Para que ela tinha olhares? É aí que Darnton
conta a vida de Ranson, um burguês relativamente confortável financeiramente
que era apaixonado por ler, principalmente por Rousseau e suas obras. Saber
como uma pessoa lia um livro pode ser a chave para saber como ela lia (via) e
dava sentido ao seu mundo. Então Darnton estuda as 47 cartas que Ranson
enviou a uma grande editora suíça da época, todas haviam encomendas de livros e com isso podemos saber alguns dos tipos de obras que essa pessoa lia. Assim
o historiador conseguiu encontrar um livro sobre leitura em que Ranson havia
comprado tanto para buscar práticas de leitura quanto para ensinar seus filhos, e analisando essa obra, o historiador pode ter uma noção de como as pessoas
liam e buscavam o sentido no texto. Mas o que chama mais atenção é que esse
burguês realmente mantinha uma conversa com o editor, contava de sua vida e
principalmente falava sobre Rousseau e como amava suas obras. A partir disso,
sabemos o poder da literatura e como ela realmente mudava o mundo dos leitores,
elas não apenas tiravam um sentido ou uma “moral” das histórias que liam, mas a
partir dos livros elas moldavam o próprio mundo. E sabe de algo mais? Darnton
mostra qual mundo “literário” era esse.
Acho que estou deixando me levar
demais pela paixão dessas narrativas. Os
outros ensaios históricos nos esclarecem um pouco mais sobre os contos de
fadas. Sabe os irmãos Grimm, Charles Perrault e esses outros famosos pelos seus
contos como Chapeuzinho Vermelho, João e Maria? Então, Darnton conta um
pouco do desenvolvimento desses contos, e como eles derivam das fábulas orais
que os camponeses franceses contavam a beira da fogueira na noite. Ele traz o mais
próximo desses contos originais, e como eles trazem o entendimento que os
próprios camponeses tinham de suas míseras vidas violentas e sem esperança. .
Darnton também mostra como
esses contos orais franceses se desenvolveram e foram moldados por outras
culturas, como alemã e inglesa. Ele mostra um pouco da face de cada uma,
podendo nos mostrar a peculiaridade dos camponeses franceses e como pelo contos
eles expressam seu mundo. Temos também a história da enciclopédia de Diderot,
que Darnton não apenas mostra como ela foi desenvolvida, ampliada, e da onde a
ideia e as inspirações surgiram para seus autores. Ele mostra como a
enciclopédia foi um projeta puramente iluminista, um mapeamento do conhecimento
e do mundo. Como que os autores viam essas classificados e ordenamentos das
ideias e das informações da França do século XVIII. Há também a história de um
burguês, que tão amante de sua cidade, decide escrever sobre ela para
visitantes. Darnton nos mostra quem realmente é o burguês do Antigo
Regime (sabe aquela coisa: onde vivem? O que comem? Como dormem? Rsrsrs) E
disso, como ele via categorizadamente a sua sociedade, porque e como se
considerava um burguês, e como podemos ter certeza disso.
Enfim, depois de longos devaneios
meus, o que eu tenho para dizer desse livro é que ele pode mudar o que você
pensa da História, do passado e das pessoas que viveram nele. Darnton
sempre, em toda sua produção histórica, teve o total cuidado de deixar seu
texto claro para todo tipo de público. Ele é um verdadeiro bardo, que nos deixa
curioso e controla com maestria seu público; sua voz nos encanta e ficamos presos à narrativa contada diante da fogueira. Sua escrita é cativante e tem um
certo humor que dar prazer na leitura. Ele realmente veste o manto de
historiador, daquele de mergulhar nos documentos empoeirados e trazer à luz histórias exóticas e cativantes, além de conseguir nós transportar àquele mundo distante no tempo,
com pessoas estranhas, de pensamentos, experiências e vidas diferentes.
Darnton
tem uma grande produção historiográfica. Como dito, seu tema de pesquisa é a
França do século XVIII – sua intelectualidade, suas simbologias e seus
“moradores”. Sua atenção se volta à questão dos livros, do seu comércio, de
seus autores, suas vidas e experiência. Seu objetivo é tentar remontar aquele
mundo em suas múltiplas faces e perspectivas, e mostrar que a História não é
apenas de reis, políticos, imperadores, generais, intelectuais. Não são apenas
repletas de fatos e datas. Em outro livro, O Beijo de Lamourette, Darnton
apresenta em um dos seus capítulos os intermediários do comércio livresco: os
livreiros, editores, comerciantes, transportadores (imagine como era difícil
atravessar uma fronteira montanhosa com uma imensa quantidade de livros
ilegais). Ele busca essas histórias peculiares e bizarras para mostrar que,
além de revelar a nós outras faces históricas, a história não se faz apenas aos
pés de “grande ícones”.
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